03/12/2025

Função social da propriedade: entre a lei, a cidade e o bom senso

Por Ricardo Murilo da Silva, especialista em Direito Ambiental e Imobiliário

A função social da propriedade é uma daquelas expressões que todos conhecem, mas poucos sabem o que significa de fato. Está na Constituição, no Estatuto da Cidade e nos planos diretores, quase sempre repetida em tom solene, como um mantra jurídico. Mas a sua concretização cotidiana — o que é “cumprir” a função social — ainda depende muito da sensibilidade de quem interpreta e aplica o direito.

Recentemente, uma decisão administrativa da Prefeitura de São Paulo mostrou que é possível equilibrar técnica e razoabilidade na aplicação desse princípio. O caso envolveu um imóvel — aqui narrado com endereço fictício: rua das Amoreiras, nº 72 —,  classificado como “subutilizado”, conceito central na política urbana. Em tese, um terreno subutilizado é aquele que não alcança o coeficiente de aproveitamento mínimo previsto em lei, ou seja, uma fórmula que relaciona o tamanho da construção com o tamanho do lote. Quando o índice é muito baixo, o imóvel pode ser enquadrado em instrumentos de indução ao cumprimento da função social, como o IPTU progressivo ou a edificação compulsória.

No entanto, o caso da rua das Amoreiras era mais complexo do que a equação indicava. No local funcionava uma pequena fábrica de equipamentos de segurança pessoal e profissional, com três galpões operacionais, árvores preservadas e uma área aberta usada para logística e armazenamento. Ou seja, não se tratava de um espaço ocioso ou abandonado, mas de um imóvel produtivo e ambientalmente equilibrado, que cumpria papel econômico e social relevante no território.

Mesmo assim, o proprietário foi notificado para “aproveitar melhor” o terreno. Ao responder, explicou que o uso e a construção do imóvel já estavam de acordo com as exigências legais. A discussão, então, deixou de ser meramente técnica e passou a ser conceitual: cumprir a função social é construir mais ou usar melhor?

Após nova vistoria, a Secretaria de Urbanismo constatou que o imóvel atingia exatamente o índice mínimo exigido pela Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo e que o uso era compatível com a zona em que se localizava — uma ZEIS 5, que admite atividades produtivas. Diante disso, a prefeitura revogou a notificação e reconheceu que o imóvel cumpria a função social da propriedade.

À primeira vista, a decisão parece trivial, mas ela revela algo essencial: o poder público não pode aplicar o direito urbanístico de forma mecânica, reduzindo a função social a um cálculo de metros quadrados. A verdadeira função social da propriedade não está na verticalização, mas na utilidade coletiva do espaço urbano — seja produzindo, empregando, preservando ou simplesmente mantendo o equilíbrio ambiental do entorno.

Casos como esse são mais comuns do que se imagina. Em muitas cidades, o discurso sobre a função social acaba se transformando em exigência de edificação a qualquer custo, como se a única forma legítima de contribuir para a cidade fosse construir mais. O resultado é o oposto do pretendido: pressiona-se o pequeno proprietário, ignora-se o contexto local e esvazia-se o próprio sentido do princípio.

A decisão da rua das Amoreiras seguiu outro caminho. Ela demonstra que é possível — e necessário — interpretar a política urbana com racionalidade administrativa. Isso significa olhar para o caso concreto, ouvir o cidadão, avaliar o impacto urbano e ambiental da atividade e aplicar os instrumentos de planejamento com proporcionalidade. Esse é, em última instância, o espírito do artigo 182 da Constituição Federal, que consagra o direito à cidade como um direito coletivo, não apenas um conjunto de índices técnicos.

A lição que fica é clara: a função social não é um número, mas uma ideia. É a noção de que a propriedade deve cumprir um papel útil, coerente com o interesse público e com a sustentabilidade da cidade. Pode ser um edifício, um parque, uma indústria, um pequeno comércio ou até uma área verde funcional. O essencial é que o uso tenha sentido social, econômico e ambiental.

Quando a administração pública reconhece isso, transforma o urbanismo em um instrumento de equilíbrio e justiça, e não de mera sanção. Ganha o proprietário, que encontra previsibilidade, a cidade, que se desenvolve de forma coerente, e ganha o próprio Estado, que reforça a legitimidade de sua atuação técnica.

A função social da propriedade, afinal, não é sobre construir mais, é sobre fazer a cidade funcionar melhor. E esse talvez seja o verdadeiro sentido do urbanismo contemporâneo: construir menos muros e mais coerência.


Legenda: Ricardo Murilo da Silva
Créditos: Daniel Zimmermann